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RESENHA [POCESKI, Mario.
Introdução às religiões chinesas
. Tradução de Márcia Epstein
.
São Paulo: Editora Unesp, 2013. 363 p., ISBN 978-85-393-0392-2]
Matheus Oliva da Costa
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Ao ano de 2013, a Editora Unesp presenteou o público brasileiro com a tradução de uma importante obra de Mario Poceski. Este cientista da religião, professor do
Departament of
Religion (Studies)
na Universidade da Flórida, há alguns anos tem publicado trabalhos renomados sobre o Budismo, em especial na China da era Tang (618-907). Mais recentemente, em 2009, publicou esta obra que é, ao mesmo tempo, concisa em conteúdo e rica em detalhes sobre as tradições religiosas das culturas chinesas, que temos agora em português.
Abordagem e estrutura do livro
De uma maneira sucinta, pode-se afirmar que este livro é uma obra sobre as culturas chinesas, mas especializada em suas tradições religiosas. De início, Poceski
chama a atenção para dois termos “problemáticos”, China (p.
3) e Religião (p. 4), esclarecendo equívocos antigos e propondo leituras mais lúcidas sobre essas noções. Diferente de outros livros introdutórios, ou que tentam falar de muitas religiões ao mesmo tempo, Poceski revela uma dupla sensibilidade em sua escrita. De um lado, se distancia de noções ingênuas e desatualizadas de
religião
, tendo uma visão abrangente e madura da temática, digna de um cientista da religião experiente. Por outro lado, não se satisfaz com uma simples exposição das doutrinas e principais fatos históricos das tradições espirituais da China. Ao contrário, oferece uma percepção dinâmica da religião em geral e de cada uma das tradições especificamente, evidenciando suas transformações e hibridismos ao longo do tempo. Ainda que o foco de boa parte do livro seja no chamado
sanjiao
(Três ensinamentos/religiões), o Confucionismo, Daoismo e Budismo, seu conteúdo vai além.
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Mestrando em Ciência da Religião pela PUC-SP, pesquisador bolsista do CNPq, membro do CERAL, matheusskt@hotmail.com
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Inclui religiões como o Zoroastrismo (p. 273), a Religião Popular chinesa (p. 207) e a situação das religiões na atual China comunista (p. 316). Sua abordagem propõe mapear
“o terreno espiritual” e
“o estudo da(s) religião(ões) chinesa(s) em termos das diferenças
consagradas entre tradições
distintas” (p.
7). Assim, ele dá
ênfase aos “múltiplos padrões
de interação inter-
religiosa” (p
. 7), apontando processos culturais de hibridismo, empréstimos ou sectarismos. Por exemplo, há dois capítulos dedicados a cada um dos
sanjiao
. Interessante perceber que o primeiro capítulo sobre a tradição confucionista é o segundo do livro, sendo que a segunda parte sobre essa tradição é tratada somente no capitulo oitavo, depois de capítulos sobre o Daoismo, o Budismo e a Religião Popular. Além disso, em todos os capítulos há convites sutis para voltar (ou adiantar) tópicos sobre outras tradições, sem, no entanto, prejudicar a continuidade da leitura.
Seguindo essa lógica, o leitor e leitora pode perceber a circularidade cultural que houve na China.
Em sua estrutura, o livro apresenta-se como conscientemente didático, uma vez que se trata de uma introdução. Encontramos todo um arsenal de elementos facilitadores da leitura: constante uso de imagens, quadros com citações de textos antigos,
“tópic
os
principais”
no início dos capítulos,
“pontos
-
chave” estudados, “questões para discussão”
e
“leituras complementares”.
No final da obra encontra-se também um Apêndice (p. 345) com datas (lunares tradicionais) e nomes das principais comemorações e festivais chineses. Dessa forma, a leitura se tornou atrativa a quem está começando a ler sobre religiões chinesas, mas também oportuno aos especialistas.
Balanço crítico
Mesmo que essa obra venha acompanhada de diversos bons motivos para ser lida, devemos apontar algumas questões problemáticas. A primeira delas, e a mais polêmica, é a caracterização do Confucionismo como uma religião (p. 46). Na mesma página, Poceski faz uma bela discussão sobre noções de religião limitadas ao contexto europeu. Teve o cuidado de esclarecer e diferenciar que Confucionismo é um termo estrangeiro para o que os chineses chamam de
Rujia
(escola dos eruditos). Contudo, mesmo que haja
“características no confucionismo tradicional que apresentam uma orientação religiosa aberta ou implícita”
(p. 72), este não é uma religião, enquanto
sistema
religioso. A
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caracterização dos
aspectos
religiosos/espirituais no
Rujia
, bem como, suas divinizações por interpretes da tradição e pela religiosidade popular, já bastariam. O segundo ponto apresenta-se mais como um problema de tradução e terminologia. Ainda que um olhar na obra completa revele uma ótima tradução, vemos a tradução de certos termos com certa suspeita. O exemplo mais gritante está na tradução
do termo “
priest
” (p.
92) por
padre
, quando, no contexto linguístico anglo saxão o termo sugere uma concepção mais ampla, como no termo português
sacerdote
. Isso é um problema mais especificamente por que ocorreu com frequência nos capítulos sobre o Daoismo, já que no Brasil o termo
padre
é exclusivo do ambiente cristão-católico. No mesmo capítulo sobre Daoismo encontramos o termo
paróquias (parishes
), para designar estruturas regionais dos primeiros grupos daoistas. Neste caso, o problema não foi a tradução, mas um termo inadequado utilizado pelo autor, já que é impreciso
falar de “paróquia” daoista.
E, aproveitando o assunto, é notável que a tradução brasileira utilizou o termo
T
aoismo, ao invés do srcinal
D
aoismo (
Daoism
). Nesse caso, perdeu-se a oportunidade de usar o termo que, além de ser usado pelos principais pesquisadores atuais dessa religião, está mais próximo da sua transliteração do termo chinês
daojiao
. O termo
D
aoismo é mais preciso academicamente, apesar do uso de
Tao
e
Taoismo
no Brasil ser mais comum. Da mesma forma, é possível observar posições felizes e ideias inspiradoras. Todos os capítulos são marcados por uma visão ampla das religiões estudadas, abrangendo suas dimensões políticas, socioculturais, artísticas, de gênero e posicionamentos intra e inter-religiosos, além de informações bem atualizadas ao século XXI. Sendo sua especialidade há alguns anos, as partes sobre o Budismo sensibilizam para o fato de que essa tradição tanto influenciou de forma profunda a China, como foi intensamente modificada ao longo de seu desenvolvimento neste país (p. 143). Como cientista da religião, a leitura do capítulo sobre Religião Popular é especialmente instigante. Aqui, o debate sobre concepções de religião reaparecem, mas desta vez com um novo argumento: muitos conceitos que usamos para estudar religiões
são “criação acadêmica
introduzida como
formulação heurística” (p.
208). É o caso do conceito de
Religião Popular
. Isso esclarece a noção sobre as crenças e práticas populares, e resolve de modo mais honesto a preocupação de alguns teóricos quanto às srcens e aplicabilidade dessas categorias, tratando-as como
lentes teóricas
.
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Sobre a Religião Popular chinesa propriamente dita, o capítulo traz duas chaves interessantes. Primeiramente, é notável como Poceski nos convida a entender melhor a religiosidade popular para entender os contornos da cultura chinesa: tendência a um inclusivismo sincrético, mas sempre passando por lentes
locais
. Isso é especialmente instigante se comparado com a religiosidade popular brasileira, que segue tendências próximas. Estudos comparativos de expressões religiosas populares na China e Brasil podem revelar aspectos interessantes das duas culturas (e suas pluralidades internas), mas também possíveis convergências ainda não percebidas por pesquisadores de ambos os países.
Recomendações para leitura
Acreditamos haver dois públicos que podem se beneficiar de uma maneira especial com a leitura da obra.
Para os cientistas da religião e estudiosos das religiões de modo geral
, este livro apresenta elementos relevantes para o polêmico debate sobre a concepção acadêmica de religião, a partir dos exemplos chineses (p. 4, 46, 208). Afinal,
o estudo das religiões chinesas nos conecta com a tendência generalizada de construir diversas identidades religiosas abertas e híbridas, que contrastam com os padrões ocidentais e islâmicos de identidades e filiações religiosas constritas e singulares, cujo principal fundamento é a fidelidade a uma igreja, um dogma revelado, ou uma escritura sagrada (p. 4).
Outro público que pode se beneficiar de modo especial são os
estudiosos das culturas chinesas
(sinólogos/as), bem como para os interessados de forma geral pela China. Pois,
segundo Poceski, “o conhecimento e a valorização da história religiosa
multifacetada da China deve ser parte fundamental de qualquer esforço sério de
compreender o passado e o presente da China com a devida profundidade” (p.1).
Tendo em vista a história chinesa e sua recente ascensão no contexto mundial, essa obra mostra-se como uma referência para quem quer entender melhor o
País do Meio
.